Para a índia Carol, poetisa que me ensinou a comer vento.
Conto o que vejo, e vi a pouco nessas esquinas do centro de uma borda qualquer a epopéia de uma luz em trapos cortando ruas sérias, engravatadas com seus ares mortos. E ele ia arrogante, cigarro entre os dedos, sem olhar os patifes que se desviavam de seu cheiro nauseabundo. Exigia dos mortos moedas para o café, pequena oferta em agradecimento à vida, brinde ao maior e mais orgulhoso dentre os homens. Diziam mendigo, mas sei que é disfarce, pois é impossível olhar pra tamanha grandeza sem se cegar.
Aprendera, junto ao mar, a se trans-formar. Era pombo das estátuas de heróis de guerras
sem importância nos dias cinzas de agosto desses trópicos disfarçados, quase hipotérmicos. Era silêncio das horas que se aquietavam carros e gente. Em noite de céu ilusório era também escuridão doce. Uma vez virou golfinho, desses que se perdem em baías sujas. Quase morreu afogado. Esqueceu que estava fora d’água. Sempre esteve fora desse mundo demasiado humano, sem condolência para os idiotas que se deixam ser burocracia ordeira, aerodinâmica de monomotores cansados. Jurara para si que não permitiria nunca mais um fim de dia sem crepúsculo. Nunca mais.
Já fora dos rios com suas margens, sentidos e murmúrios. Agora era mar por inteiro em noites de tempestades violentas, barco a deriva, poeta preso em mastro. Compunha serenatas na escuridão com o peso do vento uivante, com a voz dos trovões que recobrem os mundos. Sua voz, poeira de estrela caída em noite esmaecida, não incomodava os ratos, companheiros de farras noturnas. Rabiscava os muros com os dedos e exigia atenção dos pássaros quando não gastava as horas dando encontrões nos ponteirinhos que se revestem de importância.
E ria, como ria. Ao meio de jornais velhos compunha barquinhos, ninava os filhotes de Pandora enquanto, tadinha, dormia descansando as tetinhas tão gastas. Também gostava de descansar nos dias quentes aos pés do grande Imperador. Enquanto o mundo ruía, sob um sol absurdo, era embalado em sonhos de criança, reinado de imanência dos tempos vindouros onde se expulsava, com um simples gesto, soberanos vis: "Saia da frente do meu Sol!". Seu sol se impunha em peito aberto a acompanhar a ginga indecente, tambores ressoando para sempre em seu corpo frágil. O choro reservava para os dias de chuva, somente.
Lavava as feridas para ver se pariam flores. Esperava girassóis, mas não pesaria caso viessem cravos. Entregava-se aos dados, e sem deuses a vigiar cruzava os céus a bordo dos raios da estrela-luz.
Conto o que vejo, e vi a pouco em meio a covardes, o homem de amanhã. Seu amuleto, a pureza de que é feita a valentia dos grandes. Seu espírito, a loucura desses tempos fechados - opção lúcida daqueles que se sabem livres.
Lua
Há 8 anos
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