“Assimetria das curvas dos rios daquelas matas interiores tocando as linhas retas das estradas da Nova Ibéria; anúncio do novo com seus chips eletrônicos e suas danças para chuvas”.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O mendigo que virou luz

Para a índia Carol, poetisa que me ensinou a comer vento.




Conto o que vejo, e vi a pouco nessas esquinas do centro de uma borda qualquer a epopéia de uma luz em trapos cortando ruas sérias, engravatadas com seus ares mortos. E ele ia arrogante, cigarro entre os dedos, sem olhar os patifes que se desviavam de seu cheiro nauseabundo. Exigia dos mortos moedas para o café, pequena oferta em agradecimento à vida, brinde ao maior e mais orgulhoso dentre os homens. Diziam mendigo, mas sei que é disfarce, pois é impossível olhar pra tamanha grandeza sem se cegar.

Aprendera, junto ao mar, a se trans-formar. Era pombo das estátuas de heróis de guerras
sem importância nos dias cinzas de agosto desses trópicos disfarçados, quase hipotérmicos. Era silêncio das horas que se aquietavam carros e gente. Em noite de céu ilusório era também escuridão doce. Uma vez virou golfinho, desses que se perdem em baías sujas. Quase morreu afogado. Esqueceu que estava fora d’água. Sempre esteve fora desse mundo demasiado humano, sem condolência para os idiotas que se deixam ser burocracia ordeira, aerodinâmica de monomotores cansados. Jurara para si que não permitiria nunca mais um fim de dia sem crepúsculo. Nunca mais.

Já fora dos rios com suas margens, sentidos e murmúrios. Agora era mar por inteiro em noites de tempestades violentas, barco a deriva, poeta preso em mastro. Compunha serenatas na escuridão com o peso do vento uivante, com a voz dos trovões que recobrem os mundos. Sua voz, poeira de estrela caída em noite esmaecida, não incomodava os ratos, companheiros de farras noturnas. Rabiscava os muros com os dedos e exigia atenção dos pássaros quando não gastava as horas dando encontrões nos ponteirinhos que se revestem de importância.

E ria, como ria. Ao meio de jornais velhos compunha barquinhos, ninava os filhotes de Pandora enquanto, tadinha, dormia descansando as tetinhas tão gastas. Também gostava de descansar nos dias quentes aos pés do grande Imperador. Enquanto o mundo ruía, sob um sol absurdo, era embalado em sonhos de criança, reinado de imanência dos tempos vindouros onde se expulsava, com um simples gesto, soberanos vis: "Saia da frente do meu Sol!". Seu sol se impunha em peito aberto a acompanhar a ginga indecente, tambores ressoando para sempre em seu corpo frágil. O choro reservava para os dias de chuva, somente.

Lavava as feridas para ver se pariam flores. Esperava girassóis, mas não pesaria caso viessem cravos. Entregava-se aos dados, e sem deuses a vigiar cruzava os céus a bordo dos raios da estrela-luz.
Conto o que vejo, e vi a pouco em meio a covardes, o homem de amanhã. Seu amuleto, a pureza de que é feita a valentia dos grandes. Seu espírito, a loucura desses tempos fechados - opção lúcida daqueles que se sabem livres.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Minas Gerais

No céu rasgado desta terra em flor
Os dias cortam noites frias
As horas abrigam grilos e serestas
O silêncio grita em ventos surdos
As estrelas golfam segundos de mistérios crescentes
O coração se alarga no meio da madrugada...

Doída, triste e sempre passada.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Comentários sobre o artigo do Prof. Emir Sader, "Peru: civilização inca e seu massacre"

Mais do que discutir fatos históricos incontestes, quero problematizar sobre a necessidade de escrever sobre o óbvio - massacres de ontem e de hoje dos povos originais das Américas - que se faz, para alguns, um equivocado e mal intecionado exercício ideológico.

Seja por ignorância, má fé, ou mesmo, estupidez, os envergonhados de nossa ascendência índia e negra se comprazem da cor de sua epiderme, quase branca, dos traços de seus rostos, quase delgados, da altivez de seu comportamento contido, riso tímido, quase britânico, dos valores ocidentais que prometem um futuro de prosperidade e bem estar, um futuro quase perfeito. Para estes néscios, quase europeus, a importância de um artigo como do professor Emir Sader se deve extamente para explicitar o óbvio, para marcar mais uma vez a fronteira que nos separa dos povos do norte.
Nossa históra, cultura, nossas idéias, nossos corpos foram marcados, indelevelmente, pela experiência da colonização. Enquanto chorávamos com os chicotes, patíbulos e argolas, eles riam em seus festins relembrando feitos memoráveis: A conquista do México, o massacre de Eldorado dos Carajás, a prata de Potosí, o Massacre de Tlatelolco, o assassinato de Salvador Allende, o ouro das Minas Gerais, o resgate de Athualpa, o Consenso de Washington... Enquanto lutávamos com a coragem dos araucanos, inquebrantáveis, eles produziam com sua maravilhosa ciência, técnicas de torturas refinadíssimas, último estágio do processo civilizador.

Em suma, nos apraz - nós, latino-americanos - evidenciar mais uma vez o óbvio, não por um exercício niilista de vivenciar a dor dos nossos povos ou marcar a impossibilidade de criar aqui o que o norte criou lá. Mais um vez, sabemos da nossa diferença, não temos vergonha dela. Falar do holocausto das Américas é nos colocar em movimento. É o ponto crítico necessário para revitalizar a dignidade que há em nós, e nos fazer conscientes da luta infinita que travaremos sempre.

http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=160#comment-anchor

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A violência da poesia

A poesia é meu artifício para driblar o excesso de seriedade que vestem à vida. É meu pulmão que expele os ares viciados de um peito cansado de panos. É necessário olhar para lua e se espantar. É necessário que os sabores do mundo violentem os nossos corpos. Os instintos não deixam dúvidas sobre toda a intensidade que cobre o mundo como o beijo afoito que abrasa línguas quase acostumadas somente às palavras. Não há necessidade de rostos rígidos, de ternos escuros no centro da cidade, não há necessidade nem de cidades e nem de centros. Eu gosto das esquinas quando cai o dia. Quando a noite aponta no céu suave e os tambores ressoam nas esquinas. Gosto do cheiro dos temperos fortes dos corpos e comidas nas esquinas de gente bonita tocando tambor. Sim, a poesia é arma que não despeja brutalidades, não veste ternos nem se contrai... Se estende preguiçosa no apontar da noite. Escuta o povo cantando e canta também se alongando, se espreguiçando. Não há calor nem dobras, não há dinheiro pra contar no fim do dia, não há cidade para pisar com os pés. Não há pés para pisar. A poesia se desdobra em chuva, catavento, balão colorido, fumaça de churrasquinho... sempre distante, a uma palmo do toque, nunca tocada. A poesia nos faz forte, mas não é esta força que cortejam os brutos. A poesia dá nó na garganta... as palavras tropeçam, os olhos marejam. Anunciemos a chegada da lua com os nossos batuques, com as nossas esquinas indolentes, com nossa gente gostosa que sabe cantar, mas não sabe se vestir. A poesia me faz poeta quando choro a toa, quando vejo a lua e sei do instante. Sem peso, sou pluma e choro. Sou poeta nas horas sem horas, onde tudo é fumaça, indistinção e lágrima.